quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Sarah Kane


Eu não bebo. Odeio cigarro. Sou vegetariano. Não fico fodendo por aí. Nunca procurei uma prostituta e nunca tive nenhuma doença sexualmente transmissível, além de sapinho. Posso não ser o único, mas que sou uma raridade, isso sou.

domingo, 22 de agosto de 2010

Enrique Gómez-Correa

 
Debaixo da ponte do arcebispo, junto a uma verdadeira
corte dos milagres, reúnem-se os mendigos.
Mendigos cristãos, mendigos ateus, mendigos budistas,
mendigos muçulmanos, mendigos judeus.
Enfim, mendigos de todas as cores.
Discutem o resultado do sim e não a suas petições.
Discutem a desvalorização da moeda e
a proliferação de falsos mendigos.
O mendigo cristão fala da perda de
prestígio da caridade nos dias de hoje.
O mendigo ateu disserta sobre o não-deus e
suas pouco eficazes prédicas no deserto.
O mendigo budista fala das dificuldades atuais de
que padece a transparência do nirvana.
O mendigo muçulmano insiste na urgência de
alguns fanatismos em nome de Alah.
O mendigo judeu lamenta que freqüentes ataques de
ira de Jeovah caiam sobre sua cabeça.
E o mendigo de outras cores se queixa das
queixas dos mendigos queixosos.
Depois, tudo termina e os peregrinos voltam às
suas respectivas igrejas, maldizendo
os usurpadores de seus respectivos direitos.

Fernando Pessoa

 
Quem sonha mais,
Eu ou tu?  Tu que vives inconsciente,
Ignorando este horror que é existir,
Ser, perante o [profundo] pensamento
Que o não resolve em compreensão, tu
Ou eu, que analisando e discorrendo
E penetrando [...] nas essências,
Cada vez sinto mais desordenado
Meu pensamento louco e sucumbido.
Cada vez sinto mais como se eu,
Sonhando menos, consciência alerta
Fosse apenas sonhando mais profundo

domingo, 15 de agosto de 2010

Carola Saavedra

(...) o amor só poderia ser isso, um arrebatamento, um enlevo, e um corpo dentro de outro corpo, desfazendo-se numa impossível simetria, você pensava, o amor só poderia ser isso, essa conquista, essa captura, pois agora tudo meu era teu, a minha espera, o meu receio, e toda alegria e todo assombro, e até as palavras que eu não disse eram tuas, e você pensando que isso deveria ser o amor, quando se perde o medo, e nada mais te fere, e nada mais te escapa, agora que você era capaz de tudo, agora que minha desordem te envolvia e te enlaçava. Porque, finalmente, a nossa força e a nossa fraqueza e o vai-e-vem insistente e a distância, e essa linha que nos unia, como se você estendesse entre nós um atalho, uma ponte, e repetisse, vezes sem fim, que era teu o que quisesse, pois o amor era isso, quando, finalmente se perde o medo, o medo que nos paralisa, o medo que nos detém, e se é capaz das coisas mais belas e espantosas, como amar e construir uma ponte para o outro corpo, a tua mão, e você pensava que aquilo deveria ser o amor, depois da guerra e da derrota e do medo, o amor, esse vínculo que nos une e nos destrói, e você pensava, o amor deve ser isso, estender uma ponte e atravessá-la e destruí-la (...)


Raquel Naveira

A vida bate como um relógio. Um arfar de vento no capim. É fome que rói as entranhas, facho que ilumina os olhos, percorre o corpo em incêndio e queima os lábios de paixão. Um cheiro de carne, de vinho, de fruta recém-tirada do pé. A vida recende violenta, por que não abocanhá-la inteira, cruel, vermelha, suculenta, escorrendo sangue pelos dentes?

sábado, 14 de agosto de 2010

William Shakespeare

Sendo sincero, eu não te amo com meus olhos,
Porque eles em ti notam milhares de erros,
Mas é meu coração que ama o que eles desprezam,
Que ao invés de ver se contenta em seu apaixonar.
Nem minhas orelhas com o som de sua língua que encanta,
Nem carinhoso sentimento é despertado por um simples toque,
nem gosto, nem um cheiro provocante surge
Em algum deleite sensual contigo sozinha;
Mas meus cinco juízos, nem meus cinco sentidos podem
Despersuadirem meu coração tolo de te servir,
Que deixa descontrolada a aparência de um homem,
Teu corações orgulhosos escravos e vassalos infelizes serão:
Só minha praga, portanto longe eu estimo minha vitória,
Que ela faça minha dor merecedora de pecado.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Machado de Assis

O coração humano é a região do inesperado.

Julien Green

 
Você sabe tão bem quanto eu que uma das principais causas do tédio é a estreiteza de nosso destino. Todas as manhãs despertamos iguais ao que éramos na véspera. Ser eternamente o mesmo é insuportável para os espíritos refinados pela reflexão. Sair do próprio eu é um dos sonhos mais inteligentes que um homem pode ter.


Alberto Caeiro

 
Deste modo ou daquele modo, conforme calha ou não calha. Podendo às vezes dizer o que penso, e outras vezes dizendo-o mal e com misturas. Eu vou falando sobre os meus modos sem querer. Como se falar não fosse uma coisa feita de gestos. Como se falar fosse uma coisa que me acontecesse, assim como sentir o sol. Eu procuro dizer o que sinto sem pensar no que sinto. Eu procuro encostar as palavras à idéia. E não precisar de um corredor do pensamento para as palavras. Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado por que lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar. Eu procuro esquecer do que aprendi. Procuro esquecer do modo de lembrar que me ensinaram e raspar a tinta com que me pintaram sentidos. Mostrar minhas emoções verdadeiras. 

O amor me move...: Guimarães Rosa

O amor me move...: Guimarães Rosa: "

Guimarães Rosa


Eu não sentia nada. Só uma transformação pesável. Muita coisa importante falta nome.

José Saramago

 
A paciência do tempo. Duzentos anos a fabricar pedra, a construir uma pequena coluna, um mísero toco em que ninguém reparará depois. Duzentos anos de trabalho monótono e aplicado, indiferente às maravilhas que cobrem as paredes altíssimas da gruta e fazem rebentar flores de pedra do chão. Duzentos anos assim, só porque assim tem de ser.
Falo do tempo e de pedras e, contudo, é em homens que penso. Porque são eles a verdadeira matéria do tempo, a pedra de cima e a pedra de baixo, a gota de água que é sangue e é também suor. Porque são eles a paciente coragem, e a longa espera, e o esforço sem limites, a dor aceita e recusada - duzentos anos, se assim tiver de ser.


Cristiano Siqueira

 
Meu estado de espírito
não é uma coisa nem outra
Um elo de todas as coisas
com as folhas soltas

Dou três passos e paro
Olho para o céu e respiro
Sou mistura de fato marcado
Com a ilusão de um místico

Escoro meu ombro ao muro
Fecho o olho e delineio
O porquê de meu freio
E a velocidade dos mundos

Sou qualquer estado ilhado
Nem fora nem dentro de mim
Poeira cósmica ou um só cisco
Sou eu quem me assisto!


Manuel Bandeira

 

O que eu adoro em ti
Não é sua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza
O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Mas é o espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha
Nem é tua ciência
Do coração dos homens e das coisas
O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada como teu próprio pensamento
Graça que perturba e que satisfaz
O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza
O que adoro em ti lastima-me e consola-me
O que eu adoro em ti é a vida!

Bertolt Brecht

 
Nada é impossível mudar
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada,
de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural
nada deve parecer impossível de mudar.

T. Todorov


As diferenças se movimentam, com o tempo, elas mudam de lugar, se organizam, mas jamais desaparecem.  


Clarice Lispector

 
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

José Luis Peixoto




Devagar, o tempo transforma tudo em tempo
O ódio transforma-se em tempo,
O amor transforma-se em tempo,
A dor transforma-se em tempo
Os assuntos que julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo
Mas por si só, o tempo não é nada
A idade de nada é nada
A eternidade não existe.

domingo, 8 de agosto de 2010

Às vezes





“Às vezes as coisas não vão, no fim das contas,
de mau a pior. Em alguns anos, a uva resiste à geada;
o verde triunfa; as colheitas não são perdidas,
às vezes um homem sonha alto, e dá tudo certo.

Um povo às vezes pode desistir da guerra;
eleger um homem honesto; decidir que se importa
sim, e que não se deve deixar algum estranho na pobreza.
Alguns homens tornam-se aquilo que nasceram para ser.

Às vezes nossos melhores esforços não se extraviam;
às vezes a gente consegue fazer do jeito que queria.
O sol às vezes derrete um campo de dor
que parecia congelado: oxalá aconteça a você.”