sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Ruy Barbosa


(...) onde está a felicidade? No amor, ou na indiferença? Na obediência, ou no poder? No orgulho, ou na humildade? Na investigação, ou na fé? Na celebridade, ou no esquecimento? Na nudez, ou na prosperidade? Na ambição, ou no sacrifício? (...) A meu ver, a felicidade está na doçura do bem, distribuído sem idéia de remuneração. [...] Ou, por outra, sob uma fórmula mais precisa, a nossa felicidade consiste no sentimento da felicidade alheia, generosamente criada por um ato nosso. (...)


Gabriel García Márquez in Do amor e outros demônios


Uma noite, foi ela quem tomou a iniciativa com os versos que aprendia de tanto ouvir: – “Quando paro a contemplar meu estado e ver os passos por onde me trouxeste…” – recitou. E perguntou com picardia: – Como continua?
- “Eu acabarei, pois me entregarei sem arte a quem me saberá perder e acabar” – disse ele.
Ela repetiu os versos com a mesma ternura e continuaram até o fim do livro, saltando trechos, pervertendo e tergiversando os sonetos conforme a conveniência, brincando com eles à vontade, com um domínio de donos.
Tarde da noite, depois de um dia inteiro de disfarces, se sentiam amados desde sempre. Cayetano, meio de brincadeira e meio a sério, se atreveu a soltar o cordão do espartilho de Sierva María. Ela protegeu o peito com as duas mãos; houve uma chispa de raiva em seus olhos e uma rajada de rubor lhe incendiou o rosto.
Cayetano lhe agarrou as mãos com o polegar e o indicador, como se estivessem em fogo vivo, e as afastou do peito. Ela tentou resistir, e ele lhe opôs uma força terna mas resoluta.
- Repete comigo – disse: – “Enfim a vossas mãos hei chegado.”
Ela obedeceu.
- “Onde sei que hei de morrer” – prosseguiu ele, enquanto abria o espartilho com seus dedos gelados. Ela repetiu quase sem voz, trêmula de medo:
- “Para que só em mim seja provado o quanto corta uma espada num rendido.”
Então ele a beijou nos lábios pela primeira vez.
O corpo de Sierva María estremeceu com um gemido, e ela soltou uma tênue brisa marinha e se abandonou à própria sorte. Ele passou por sua pele as gemas dos dedos, tocando-a muito de leve, e viveu pela primeira vez o prodígio de se sentir em outro corpo.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Roland Barthes

Na languidez amorosa, algo se vai, sem fim; é como se o desejo não fosse outra coisa senão essa hemorragia. Eis o cansaço amoroso: uma fonte que não é saciada, um amor escancarado. Ou ainda: todo meu eu é puxado, transferido para o objeto amado que toma o lugar dele: a languidez seria essa passagem extenuante da libido narcísica à libido objetal. (Desejo do ser ausente e desejo do ser presente: a languidez suprime os dois desejos, ela coloca a ausência na presença. Surge daí um estado de contradição: é a ‘queimadura suave’) .

Gabriel Garcia Marquez in Memorias de minhas putas tristes


Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem de minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Martha Medeiros


Morre lentamente
Quem não viaja,
Quem não lê,
Quem não ouve música,
Quem não encontra graça em si mesmo

Morre lentamente
Quem destrói seu amor próprio,
Quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente
Quem se transforma em escravo do hábito
Repetindo todos os dias os mesmos trajetos,
Quem não muda de marca,
Não se arrisca a vestir uma nova cor ou
Não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente
Quem evita uma paixão e seu redemoinho de emoções,
Justamente as que resgatam o brilho dos
Olhos e os corações aos tropeços.

Morre lentamente
Quem não vira a mesa quando está infeliz
Com o seu trabalho, ou amor,
Quem não arrisca o certo pelo incerto
Para ir atrás de um sonho,
Quem não se permite, pelo menos uma vez na vida,
 Fugir dos conselhos sensatos...

Viva hoje !
Arrisque hoje !
Faça hoje !
Não se deixe morrer lentamente !

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Alice Ruiz


 Que fique muito mal explicado
Não faço força pra ser entendido
Quem faz sentido é soldado

Para todos os efeitos meus defeitos não são meus
Que importa o sentido se tudo vibra?
Não importa o sentido.
O bramido do meu canto mudo
Comporta bemóis e sustenidos
Convoca ouvidos surdos
Ao silêncio suave
Da melodia sem conteúdo
Está escrito
Quem não quiser ceder ao canto das páginas
feche os olhos
ou tape com cera os ouvidos.