quarta-feira, 30 de março de 2011

Ana Jácomo


Estive pensando nesse mistério que faz com que a vida da gente se encante tanto por outra vida. E sinta vontade de escrever poemas. Garimpar estrelas. Deixar florir pelo corpo os sorrisos que nascem no coração. Nesse mistério que nos faz olhar a mesma imagem inúmeras vezes, sem cansaço, mesmo nos instantes em que é feita de papel ou de memória.
Que nos faz respirar feliz que nem folha orvalhada.
Querer caber, com freqüência, no mesmo metro quadrado onde a tal vida está.
Cantarolar pela rua aquela canção que a gente não tinha a mínima ideia de que lembrava.
Estive pensando nesse mistério que faz com que a vida da gente encontre essa vida na multidão planetária de bilhões de outras. E sem saber que ela existia, perceba ao encontrá-la que sentia saudade dela antes de conhecê-la. Estive pensando nesse mistério que faz com que aquela vida que acaba de encontrar a nossa nos deixe com a impressão de estar no nosso caminho desde sempre, como se fosse um sol que esteve o tempo todo ali e a gente somente não o ouvia cantar. Nesse mistério que nos faz trocar buquês dos olhares mais cuidadosos.
Que nos faz querer cultivar jardins, lado a lado. Nesse mistério que faz com que a nossa vida queira um bem tão grande à outra vida, que vai ver que isso já é uma prece e a gente nem desconfia.
Estive pensando nesse mistério lindo que você é para alguém e alguém é para você ou que ainda serão um para o outro. Nessa oportunidade preciosa dos encontros que nos fazem crescer no amor também com o tempero bom da ludicidade. Nesse clima de passeio noturno em pracinha de cidade pequena. Nessa paz que convida o coração pra se recostar e repousar cansaços. Nesse lume capaz de clarear um quarteirão inteirinho da alma. Nesse abraço com braços que começam dentro da gente. Nessa vontade de deixar o mundo todo pra depois só para saborear cada milímetro do momento embrulhado pra presente.
Estive pensando nesse mistério que não consigo desvendar. Nem tento.

domingo, 27 de março de 2011

Dois Corações - Nana Caymmi


Escolhi assim: fechar portas, janelas e qualquer fresta para o sofrimento. Aqui ele não encontrará abrigo nem comida. Aqui não há espaço para ele. O que me move é o amor para todo sempre. Que assim seja. Que venha o amor!

Patrícia Antoniete


Porque eu te amo num desesperado recomeço de agruras, numa plenitude de maré incerta e vazante, eu te digo que a mim não bastam os anos, as palavras benditas, não basta a língua tão longe das feridas ou um naufrágio a muitos metros da superfície. Porque eu te amo pequena e límpida como água na concha das mãos, pousada sobre teus lábios, cônscia de tua sede, eu sei que tu me inventaste os prumos, os rumos, as vertentes, tu me puseste os olhos, tu me fundaste o ventre. Porque eu te amo em estilhaços e rompantes, nos rasgos da carne, no roçar dos dentes, no ar pouco entre as bocas urgentes, na aflição dos pecados, eu te quero no descanso dos braços, no enrodilhar desacertado das pernas e num tanto de insanidade para compensar a espera. Porque eu te amo imensa e lasciva, fêmea, vulva, viva, impregnada dos teus sumos, grande e alta como me fazem teus gestos, como me dizem teus olhos, como me ensina teu corpo, (...) Porque te amo, tanto, e mais, e contudo, que te amo e emudeço aos gritos do sol fugidio no teu rosto.
(...)
Apaixone-se por mim. Não um amor de mesa posta, talheres de prata, toalha de renda, não um amor de terça-feira, água morna, gaveta arrumada. Apaixone-se por mim no meio de uma tarde de chuva, rua alagada, rosas na mão, um amor faminto, urgente, latejante, um amor de carne, sangue e vazantes, um amor inadiável de perder o rumo o prumo e o norte, me ame um amor de morte. Não me dê um amor adestrado que senta, deita, rola e finge de morto, que late, lambe e dorme. Apaixone-se felino, sorrateiramente e assim que eu me distrair me crave os dentes, as unhas, role comigo e perca-se em mim e seja tão grande a ponto de me deixar perder. Ame minha (...) carne, me fecunde e se espalhe por meus versos, meus reversos, meus entalhes.

Alice Ruiz

Que o breve seja de um longo pensar.
Que o longo seja de um curto sentir.
Que tudo seja leve de tal forma que o tempo nunca leve.

e.e. cummings

Ana Jácomo


(...)
No meio das defesas todas, havia algo que não se defendia, não sabia como se defender, não conseguiria, ainda que tentasse. Havia algo maravilhoso para ser dado e recebido, daqueles presentes que a vida embrulha com os seus papéis mais bonitos e entrega, toda contente, para duas pessoas. Havia algo para ser trocado, e troca é quando duas vidas se sentem olhadas ao mesmo tempo. Havia algo que fazia um coração falar com o outro, ouvir o que era dito, gostar do que era dito, rir com o que era dito, sentir-se espelhado, sentir-se enternecido, querer brincar, muito além do que qualquer palavra, por qualquer motivo, por qualquer defesa, tentasse, em vão, esclarecer. Uma vontade de parar todos os relógios do mundo para eternizar a dádiva da presença compartilhada, e a impressão de que às vezes até conseguíamos.                               (...)Havia amor e, de um jeito ou de outro, sabíamos sem nos dizer, havia chegado pra ficar. O amor quando é amor é amor.