segunda-feira, 6 de junho de 2011

Clara Gontijo


Quando criança era assim, não existiam muitas escolhas.
Não se podia andar descalço nem molhar na chuva: constipava.
Menina bonita tinha o cabelo longo, e meninos cabelos curtos.
Manga com leite não podia, nem banana antes de dormir que dava pesadelos.
Papai e mamãe não gostavam, então eu não fazia.
Como boa menina, aprendi tudo o que me ensinaram,
mas ao contrário do esperado, eu constipava ao chupar manga 
e tinha pesadelos quando andava descalço.
Resolvi então cortar meus cabelos bem curtos e desaprender tudo!
Descobri um segredo precioso que não me ensinaram de pequena:
Quanto mais cresço, mais eu posso nascer.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

AINDA - Moska

Inês Pedrosa


De amor devíamos falar em surdina; é o mais frágil dos materiais humanos. Um grito e muda-se em instalação de cacos, uma inclinação do olhar e perde-se na máquina da multidão. Distrai-se o amante e transforma-se em simples coisa amada, acariciada, gasta como a concha que se guarda e se esquece, empurrada pelo mar para o fundo do armário. Tropeçamos nele quando já nem nos lembrávamos da gaveta onde o havíamos escondido até à memória do olvido derradeiro - em que praia encontramos esta concha? De que cor era quando nos atraiu, no seu brilho intermitente, alagado de sol? Tocamos-lhe, anos depois, e a rocha vermelha de que é feito esse bicho hibernante a que chamamos coração começa a mover-se de novo, esquecendo a decisão antiga que o acalmara em mineral. O coração que acorda não recorda a dor que o adormeceu; esqueceu tudo menos o tormento voluptuoso desse tempo de entrega que não passou. Ruíram as pontes, esboroaram-se as moradas, mas o tempo não passou - o tempo desse processo revolucionário em curso, a sépia e sangue, que só depois reconhecemos como filme da nossa vida.