quinta-feira, 29 de maio de 2008

Eros e Psiquê

Fernando Pessoa

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

"A pior parte de existir
É se enganar, criar um intuito

Impossível de se compreender
Forçar o meu eu a viver fora do meu.

Deixar de me recriar e compreender

Tirar a minha vida."

(Bárbara - aluna do CEM 02 - Gama)

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Fabrício Carpinejar


Levante a mão quem não quer um amor egoísta, avassalador, que ultrapasse os limites? Um amor que não peça licença, que não fale bom-dia? Um amor que esqueça o passado e dê de ombros ao que possa vir? Um amor todo tremor e insuficiência? Um amor que deixe idiota e torne o corpo inteligente? Quem não quer, hein? Um amor incondicional, absurdo e ilegível aos colegas? Um amor que não faça pensar em outra coisa além dele?

Não invejo esse amor. Desconfio desse amor. Amor não é privação. Confortável amar uma mulher isolada de seu contexto. Levá-la para um lugar longe do incômodo, uma praia ou uma serra, enchê-la de mimos e palavras fortes. Sussurrar presságios e fugir com o vento. Não preciso me isolar para amar, amo para me reunir.

É confortável ser amante sem a necessidade de permanecer para conversar. Sem ouvir. Sem a delicadeza da distância. Sem o respeito da saudade.

Árduo e puro é ser amante dia-a-dia, no meio das tarefas e pressa do emprego, no meio das contas e do fim do mês, e encontrar um jeito de não amaldiçoar a rotina. Ser gentil apesar das expressões cortadas e do apuro.

Um amante que fecha as portas dos armários e abre as portas de casa. Um amante que fica para fechar o vestido que abriu.

Confortável amar sem convívio com os defeitos. Sem as circunstâncias enfraquecendo a vontade. Com o tempo livre. Com o desejo livre.

Sou contra lua-de-mel. Sou favorável ao mel do pão, terno e repetitivo, que doura o miolo como um batom. Que gruda a língua no céu da boca. Os lábios abelhando asas pelo rosto.

Não concordo que no amor tudo é permitido. Amor não quebra a regra, o amor cria as regras. Não concordo com o amor que joga tudo pela janela, o amor tem paciência, sobe as escadas e bate a campainha. Se não tiver ninguém, espera. O amor é simples e óbvio, que não sobra muito para contar depois dele.

O amor não é para ser desmemoriado. Tem passado. Tem álbum de fotografias. Tem cartas antigas. Tem letra emendada. Tem a si mesmo.

Amor nunca dirá: que os outros se danem. Ele se importa com os outros dentro de seu amor. Até com os outros que não chegaram a tempo de vê-lo amando. Vai se importar com a opinião dos pais, dos avós e, inclusive, dos mortos.

Amor não demite, não despeja, não exclui. Amor é incluir a vida da mulher no amor. Seus filhos. Sua falta de filhos. Seu trabalho. Seus livros. Seus hábitos. Seus animais. Seus desaforos. Seus desafetos. Suas dificuldades de adaptação. Seus problemas. Suas reclamações. É amar o que não se amava, aprender a amar as verduras no prato.

Não confie nisso que chamam de paixão. Não é amor. É uma maneira certa de nunca chegar a ele.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Os Três Mal-Amados

João Cabral de Melo Neto

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto, mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Semelhante

Silvana Guimarães


Não se melindre não.
Esse jeito novo meu,
foi moda que eu inventei.
Pra esconder essa dor nova, novíssima,
que inaugurei ontem, lá pelas seis da tarde,
quando todos os anjos rezavam a ave-maria,
o sol ainda esparramava luz no mundo,
a brisa fazia cócegas nas minhas partes todas
e o vento bateu - pra sempre - aquela porta.

Não se engane comigo.
Afora essa mania boba de estar sempre comovida,
(e ficar espiando a ternura onde ninguém vai olhar)
tenho a mesma sarça ardente aqui dentro
- ardente e obscena.

Vê: sou a mesma flor.
Que não se cheira.

Madrugada

(...)Tudo dorme. Eu, no entanto, olho o espaço sombrio,
Pensando em ti, ó doce imagem adorada!...(...)



Roland Barthes

Como ciumento sofro quatro vezes: porque sou ciumento, porque me reprovo de sê-lo, porque temo que meu ciúme machuque o outro, porque me deixo dominar por uma banalidade. Sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.

Fernando Pessoa

A beleza de um corpo nu só o sentem as raças vestidas.

Silvana Guimarães

Relevo


Atrás do morro,

morro.

E é de amor.

*******

Sua

luz

minha

luz

sina

domingo, 4 de maio de 2008

Elisa Lucinda, da série “Eternidades Cotidianas”

“Euteamo” e suas estréias


Te amo mais uma vez esta noite

talvez nunca tenha cometido “euteamo”

assim tantas seguidas vezes, mal cabendo no fato

e no parco dos dias.

Não importa, importa é a alegria límpida

de poder deslocar o “Eu te amo”

de um único definitivo dia

que parece bastá-lo como juramento

e cuja repetição, parece maculá-lo ou duvidá-lo...


Qual nada!

Pois que o euteamo é da dinâmica dos dias

É do melhoramento do amor

É do avanço dele

É verbo de consistência

É conjugação de alquimia

É do departamento das coisas eternas

que se repetem variadas e iguais todos os dias

na fartura das rotações e seus relógios de colmeias

no ciclo das noites e na eternidade das estréias:


O sol se aurora e se põe com exuberância comum e com

novidade diária

e aí dizemos em espanto bom: Que dia lindo!

E é! Porque só aquele dia lindo

é lindo como aquele.

Nossa sede, por mais primitiva,

é sempre uma

loucura da falta inédita

até o paraíso da água nova

no deserto da nova goela.


Ela, a água,

a transparente obviedade que

habita nosso corpo

e nos exige reposição cujo modo é o

prazer.

Vê: tudo em nós comemora

o novo milenar de si

todas as horas:

Comer é novidade

Dormir é novidade

Doer é novidade

Sorrir é novidade


Maravilhosa repetitiva verdade que se

expõe em cachos a nosso dispor

variando em sabor e temor e glória

Por isso te amo agora como nunca antes

Porque quando te amei ontem

eu te amava naquele tempo

e sou hoje o gerúndio daquela disposição de verbo

Te amo hoje com você dentro

embora sem você perto

Te amo em viagem

portanto em viragem diferente da que quando

estava perto

Meu certo é alto, forte


Te amo como nunca amei

você longe, meu continente, meu rei

Eu te amo quantas vezes for sentido

e só nesse motivo é que te amarei.

sábado, 19 de abril de 2008

LacanEm relacionamentos amorosos,

A gente dá o que não tem,

Pra quem não quer.

Uma noite sem você (João Linhares)

Com Rita Ribeiro

(...)

A saudade incendiando a madrugada.
No silêncio queima a chama da alegria.
Ainda lembro de você naquele dia
Me beijando, me dizendo que me amava.
Te amei tanto que eu não imaginava
Que sozinho ficaria triste e oco.
Quando o mundo me chamava eu tava mouco
Galopando no vagão do pensamento
Que uma noite sem você é muito tempo
E uma vida com você é muito pouco...

domingo, 13 de abril de 2008

À tarde, prosas construídas.
Dia seguinte, à imensidão da folha branca,
Brincam palavras distraídas...

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Dois corpos que caem (trecho)

João Silvério Trevisan
(...)
- O que você faz aqui? - perguntou Antônio.- Estou me matando - respondeu João. - E você?- Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa. Anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?- Por amor - respondeu João, sentindo o vento frio no rosto. - Eu, que amava tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos...- E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? - ponderou Antônio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.- Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica- gritou João num tom quase triunfante. - Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com a vida!- Poxa! - exclamou Antônio - você fez do amor uma panacéia!- Antes fosse - replicou João, com um suspiro. - Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância
da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz. (...)

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Fabrício CarpinejarEu não sei por que a amo. Cada vez mais não sei. Pode ser pelo seu pescoço que se levanta para ganhar altura quando estamos abraçados. Ou será que é pela forma em que dobra as pernas no sofá? Ou quando se contorce em espiral com beijos nas costas? Eu não sei por que a amo. Será que pela sua preguiça, que se enrola em mim de manhãzinha? Ou pela sua disposição de dar a volta por cima? Eu já parei para pensar por que a amo, mas lamento, não sei. Realmente não sei. Talvez seja pelas sobrancelhas que falam antes dos olhos. Ou pelo umbigo que inicia a mão. Ou pelo copo que você balança antes de beber, para convencer a água a partir? Tantos homens têm um motivo certo para amar, definido como um emprego, e você foi escolher logo um que nada tem a dizer. Será que é pelo amor aos filhos, excessivo, que sempre me inclui? Ou pela sua vontade de fazer mercado depois do almoço para gastar menos? Será que é pelo modo como canta, o modo como dança, com os braços acenando em linhas sinuosas como fumaça de chá? Será que é pelo toque em meu joelho enquanto dirijo? Pela sua respiração suspensa na penumbra? Ou pelas nossas saídas de madrugada para encontrar sorvete em botecos? Será que me apaixonei pelo seu texto e quis ser seu personagem? Ou pela sua pressa de avisar que chegou, apertando o interfone mesmo com as chaves? Ou quando diz que está com frio no cinema? Ou quando fica muda querendo voltar ou quando fica ruidosa querendo passear? Ou quando pede que eu fique em casa mordendo o lábio de cima? Ou quando me enfrenta com raiva e me diz todas as verdades sem ao menos pedir para sentar? Ou quando sopra os machucados, de quem herdou o costume de soprar machucados mesmo quando não existem? Ou quando fica bêbada e declara que está bêbada para eu me aproveitar? Será que é pelo sua predileção em comprar presentes, sempre dando mais do que recebendo? Ou pela tapeçaria no fundo de suas bolsas, com notas, moedas, chicletes, batons e brincos avulsos? Será que a amo por que me irrita a viver mais? Será que a amo por que não me deixa a sós comigo? Eu juro que não sei por que a amo. Todo dia você se acorda querendo ouvir, eu pressinto, debruçada em meus ombros à espera do sinal, do cartão, das flores, da segunda aliança que é um par de palavras. Mas não descobri e não finjo. Entenderá que faltam motivos, só que sobram motivos. E dificulta-me pensar que se ama por motivos. Ama-se por insinuações. Será que é pelo seu medo de sangue? Pela sua infância vesga? Pelos seus joelhos esfolados nos móveis? Pelos seus amores frustrados? Pela sua letra arredondada nas vogais? Pela sua insatisfação com as roupas na hora de sair? Pela ânsia em atender o telefone com a esperança de que seja eu a dizer por que a amo? Eu não sei por que a amo. Não me fale. Quem sabe deixou de amar.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Ricardo Marques
Ouçam as vozes dos livros: são outro sentido, dão outro sentido. E quando são ouvidos são mais fortes que o grito, são mais doces que o riso e mais devastadores que o tiro.