domingo, 27 de julho de 2008

Pés no chão

Martha Medeiros

Volta e meia me pego falando coisas em que nem eu mesma acredito. Por exemplo, costumo dizer por aí que mantenho meus pés no chão, que não sou de delirar, de procurar cabelo em ovo, essas coisas. Pés no chão, pés no chão. Sempre falo isso com um misto de orgulho e ao mesmo tempo de estranhamento. O orgulho até entendo - pés no chão é uma metáfora para sensatez, lucidez. O estranhamento eu compreendi recentemente, quando li uns versos do norueguês Tor Age Bringsvaerd que descobri serem até manjados, mas que eu não conhecia: Quem mantém os dois pés no chão não sai do lugar.

Taí o que me incomodava.

Desde então, fico me perguntando o que os meus dois pés no chão têm me trazido de bom. Trouxeram a consciência de que não sou melhor nem pior do que ninguém, que faço o que posso. Os pés no chão me fizeram reconhecer minhas limitações e a não criar expectativas mirabolantes em relação a nada. Me fizeram desenvolver um olho clínico para detectar exibicionistas, arrogantes e toda espécie de gente que "se acha", e que me causam verdadeiro tédio. É o que me trouxeram meus dois pés no chão, tanto o esquerdo quanto o direito.

O que eles podem me tirar é que me assusta.

Não tenho vocação para a permanência eterna, para nada eterno. Não mais. Tinha quando era uma menina e não fazia idéia de que estar em movimento não era sinônimo de indecisão, e sim de sabedoria. Para frente, para trás ou para os lados: não importa a direção, o que vale é a troca de paisagem. O ângulo novo. As coisas que a gente não enxergava antes, quando estava parado.

Ao tirar os dois pés do chão, permito que as certezas me abandonem e me concedo o direito ao mistério. Não fico mais tão segura de nada, e assim abro espaço no cérebro para diversas especulações - que me levarão onde? Não sei.

O "não sei" pode, sem querer, nos apontar um caminho bem legítimo.

Tirando os pés do chão, volto a sonhar, eu que havia trocado sonhos por objetivos. Já não sou criança para temer que essa "levitação" me faça cometer bobagens. Vai ver é de bobagens mesmo que estou precisando.

Manter os pés no chão exige contração, concentração. Não é relaxante. Para sair da posição de sentido, preciso me desapegar, me desprender: será isso ruim?

Não quero mais em mim uma postura militar, uma cabeça de sargento, ao menos não todo o tempo. Preciso encontrar em mim a recruta também, o soldado que cumpre as regras, porém debocha do general quando ele não está vendo.

Vou manter meus pés no chão, porque delirar todo o tempo não é possível, não quando se tem responsabilidades adquiridas. O orgulho da consciência ainda habita em mim. Mas ficar cravada no solo, pra sempre, não dá. Como diz o norueguês, não se vai a lugar algum, então que eu me desloque ao menos em pensamentos, em vertigens mentais, em piruetas audaciosas que me façam pousar alguns metros adiante, lá onde se consegue olhar pra trás e descobrir o bem que fizemos ao mudar.

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Ralph S. Marston Jr

"A verdadeira pessoa que você é revela-se nos momentos em que você tem certeza que ninguém está olhando. Quando ninguém está olhando, você é guiado pelo que você espera de si mesmo".

terça-feira, 22 de julho de 2008

Fecundação

Gilka MachadoTeus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura.

Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços, de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão de que se vai abrir
todo meu corpo em poemas.

Fatalismo

Manuela Amaral

Amo o que em ti há de trágico. De mau.
De sublime. Amo o crime escondido no teu andar.
A tua forma de olhar. O teu riso fingido e cristalino.

Amo o veneno dos teus beijos. O teu hálito pagão.
A tua mão insegura na mentira dos teus gestos.
Amo o teu corpo de maçã madura.

Amo o silêncio perpendicular do teu contato
A fúria incontrolável da maré
nas ondas vaginais do teu orgasmo.

E esta tua ausência
Este não-ser quem é.

O presente

Alberto da Cunha Melo

O que hoje recebes

e não podes pegar, guardar

em panos e papéis laminados,

é imperecível,

presente onipresente.

Estás com ele na chuva

e não temes que se desfaça.

Estás com ele na multidão

e não o escondes dos mutilados.

O que não existe para os homens

deles estará protegido,

o que os homens não vêem

não poderão espedaçar.

Eis o que não te denuncia

porque não tem face

nem volume para ser jogado no mar.

Eis o que é jovem a cada lembrança

porque não tem data

e série, para envelhecer.

O amor e o outro

Affonso Romano de Sant'anna

Não amo melhor
nem pior do que ninguém.

Do meu jeito amo
Ora esquisito, ora fogoso,
às vezes aflito
ou ensandecido de gozo.
Já amei até com nojo.

Coisas fabulosas
acontecem-me no leito. Nem sempre
de mim dependem, confesso.
O corpo do outro
é que é sempre surpreendente.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Colaboração de Suzana Dias. Valeu pelo repouso poético-musical em seu muro...

Se ao menos uma vez tudo se aquietasse
se se calassem o talvez e o mais ou menos
e o riso à minha volta...
Se o barulho que fazem meus sentidos
não perturbasse mais minha vigília...

Então, num pensamento multifário
poderia eu pensar-te até aos teus limites
e possuir-te (só o tempo de um sorriso)
e oferecer-te a vida inteira, como
um agradecimento
.

(Rainer Maria Rilke)

domingo, 20 de julho de 2008

Norman Brown

O que está sempre

falando

Silenciosamente

é o corpo.

sábado, 19 de julho de 2008

20/07 - Dia Internacional da Amizade

Martha Medeiros - Amizade

Dei pra me emocionar cada vez que falo dos amigos. Deve ser a idade, dizem que a gente fica mais sentimental. Mas é fato: quando penso no que tenho de mais valioso, os amigos aparecem em pé de igualdade com o resto da família. E quando ouço pessoas dizendo que amigo, mas amigo meeeesmo, a gente só tem dois ou três, empino o peito e fico até meio besta de tanto orgulho: eu tenho muito mais do que dois ou três. São uma cambada. Não é privilégio meu, qualquer pessoa poderia ter tantos assim, mas quem se dedica?Fulano é meu amigo, Sicrana é minha amiga. É nada. São conhecidos. Gente que cumprimentamos na rua, falamos rapidamente numa festa, de repente sabemos até uma fofoca pesada sobre eles, mas amigos? Nem perto. Alguns até chegaram a ser, mas não são mais por absoluta falta de cuidado de ambas as partes.Amizade não é só empatia, é cultivo. Exige tempo, disposição. E o mais importante: o carinho não precisa - nem deve - vir acompanhado de um motivo. As pessoas se falam basicamente nos aniversários, no Natal ou para pedir um favor - tem que haver alguma razão prática ou festiva para o contato. Pois para saber a diferença entre um amigo ocasional e um amigo de verdade, basta tirar a razão de cena. Você não precisa de uma razão, basta sentir a falta da pessoa. E, estando juntos, tratarem-se bem. Difícil exemplificar o que é tratar bem. Se são amigos mesmo, não precisam nem falar, podem caminhar lado a lado em silêncio. Não é preciso troca de elogios constantes, podem até pegar no pé um do outro, brigar talvez (e porque não!?) delicadamente. Não é preciso manifestações constantes de carinho, podem dizer verdades duras, às vezes elas são necessárias. Mas há sempre algo sublime no ar entre dois amigos de verdade. Talvez respeito seja a palavra. Afeto, certamente. Cumplicidade? Mais do que cumplicidade. Sintonia?Oh, céus! Santa pieguice, Batman! Amor? Esta lengalenga de novo? Sério, só mesmo amando um amigo para permitir que ele se atire no seu sofá e chore todas as dores dele sem que você se incomode nem um pingo com isso. Só mesmo amando para você confiar a ele o seu próprio inferno. E para não invejarem as vitórias um do outro. Por amor, você empresta suas coisas, dá o seu tempo, é honesto nas suas respostas, cuida para não ofender, abraça causas que não são suas, entra numas roubadas, compreende alguns sumiços - mas liga quando o sumiço é exagerado. Tudo isso é amizade com trato. Se amigos assim entrarem na sua vida, não deixe que sumam. Porém, a maioria das pessoas não só deixa como contribui para que os amigos evaporem. Ignora os mecanismos de manutenção. Acha que amizade é algo que vem pronto e que é da sua natureza ser constante, sem precisar que a gente dê uma mãozinha. E aí um dia abrimos a mãozinha e não conseguimos contar nos dedos nem dois amigos pra valer. E ainda argumentamos que solidão é um sintoma destes dias de hoje, tão emergenciais, tão individualistas. Nada disso. A solidão é apenas um sintoma do nosso descaso.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

19/07 - Dia Nacional do Futebol

Pode faltar tudo neste país, menos a emoção da bola rolando nos estádios. O futebol, que hoje é um dos esportes mais populares do mundo, nasceu na Inglaterra em 1863, e logo chegou ao Brasil, em 1894, pelas mãos do paulistano Charles Miller. Chegou elitista, racista e excludente. Era um esporte de brancos, de ricos, praticado em clubes fechados ou em colégios seletos. Mas não demorou para que caísse no gosto popular, misturando o gingado do negro à força do branco. Está formado aí o nosso futebol, responsável pelo reconhecimento do Brasil no exterior, e que tanta alegria e satisfação proporciona aos brasileiros "pentacampeões".

Em um dia como esse, em 19/07/1893, nascia Vladimir Maiakovski, o maior poeta russo moderno.

E Então Que Quereis?...

Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.

Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.

Curta - Rodolfo Caruso

Sem pensar nasce um sorriso,

Independentemente do lugar.

Duas mentes; o instante,

Simplesmente a partir de um olhar.

Primitivamente o beijo,

Delicadamente invade um verbo:

Namorar.

Aí tem

Martha Medeiros

As coisas são como são. Se alguém diz que está calmo, é porque está calmo. Se alguém diz que te ama, é porque te ama. Se alguém diz que não vai poder sair à noite porque precisa estudar, está explicado. Mas a gente não escuta só as palavras: a gente ouve também os sinais.

Ele telefonou na hora que disse que ia ligar, mas estava frio como um iglu. Você falava, falava, e ele quieto, monossilábico. Até que você o coloca contra a parede: "O que é que está havendo?". "Nada, tô na minha, só isso." Só isso???? Aí tem.

Ele telefonou na hora que disse que ia ligar, mas estava exaltado demais. Não parava de tagarelar. Um entusiasmo fora do comum. Você pergunta à queima-roupa: "Que alegria é essa?" "Ué, tô feliz, só isso". Só isso????? Aí tem.

Os tais sinais. Ansiedade fora de hora, mudez estranha, olhar perdido, mudança no jeito de se vestir, olheiras e bocejos de quem dormiu pouco à noite: aí tem. Somos doutoras em traduzir gestos, silêncios e atitudes incomuns. Se ele está calado demais, é porque está pensando na melhor maneira de nos dar uma má notícia. Se está esfuziante demais, é porque andou rolando novidades que você não está sabendo. Se ele está carinhoso demais, é porque não quer que você perceba que está com a cabeça em outra. Se manda flores, é porque está querendo que a gente facilite alguma coisa pra ele. Se vai viajar com os amigos, é porque não nos ama mais. Se parou de fumar, é uma promessa que ele não contou pra você. Enfim, o cara não pode respirar diferente que aí tem.

Às vezes não tem. O cara pode estar calado porque leu um troço que mexeu com ele, ou está falando muito porque o time dele venceu. Pode estar mais carinhoso porque conversou sobre isso na terapia e pode estar mais produzido porque teve um aumento de salário. Por que tudo o que eles fazem tem que ser um recado pra gente?

É uma generalização, mas as mulheres costumam ser mais inseguras que os homens no quesito relacionamento. Qualquer mudança de rota nos deixa em estado de alerta, qualquer outra mulher que cruze o caminho dele pode ser uma concorrente, qualquer rispidez não justificada pode ser um cartão amarelo. O que ele diz importa menos do que sua conduta. Pobres homens. Se não estão babando por nós, se tiram o dia para meditar ou para assistir um jogo de vôlei na tevê sem avisar com duas semanas de antecedência, danou-se: aí tem.