Os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a biblioteca era o mundo colhido num espelho; tinha a sua espessura infinita, a sua variedade e a sua imprevisibilidade.

O amor maduro não é menor
Só quando começou a desmontar a porta do quartinho é que Úrsula se atreveu a lhe perguntar por que o fazia, e ele lhe respondeu com certa amargura: "Já que ninguém quer ir embora, nós iremos sozinhos." Úrsula não se alterou.
- Nós não iremos - disse. - Ficaremos aqui, porque aqui tivemos um filho.
- Ainda não temos um morto - ele disse. - A gente não é de um lugar enquanto não tem um morto enterrado nele.
Úrsula replicou, com uma suave firmeza:
- Se é preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, eu morro.
José Arcadio Buendía não acreditou que fosse tão rígida a vontade de sua mulher. Tratou de seduzi-la com o feitiço da sua fantasia, com a promessa de um mundo prodigioso onde bastava derramar uns líquidos mágicos na terra para que as plantas dessem frutos à vontade do homem, e onde se vendiam a preço de banana toda espécie de aparelhos contra a dor. Mas Úrsula foi insensível à sua clarividência.
Saio deixando os sapatos como alguém que larga os miúdos ao lado do prato como uma criança que mastiga ressentida o canudo do milk sheik ou uma anoréxica quebrando os espelhos do quarto. Saio sem pedir o troco do meu abandono com as malas nas mãos e a marca do teu punho nos dentes.
Eles eram dois
Mas nem sabiam que eram dois
pois os dois eram sozinhos
e se sentiam assim
sozinhos
os dois
Às vezes ficavam abraçados
testemunhando enchentes
e dividiam segredos
e riam das bobagens um do outro
e telefonavam sempre
um para o outro
só numas de ouvirem
a voz
um do outro
Eles não eram felizes
E falavam alto nos bares
E contavam histórias estapafúrdias
os dois
Se encontravam
no meio de tanta gente
Eles sempre se encontravam
e sorriam tímidos um para o outro
porque eram sozinhos
os dois
e por um momento já não era tão assim
eles eram quase dois
mesmo sozinhos
assistindo filmes de madrugada
e pegando no sono
abraçando almofadas
sozinhos
bêbados
tomando comprimidos pra dormir
aviltados com a publicidade
que cercava a solidão dos dois
E eles queriam fugir
E ele queria entrar dentro dela
e ficar lá o resto de sua vida
não pra ser um
mas pra ser dois
definitivamente
de uma vez por todas
os dois.
Bata em um cão e ele irá ganir, corte uma arvore e ela irá chorar, ofenda um homem, ele irá crescer.
Hoje pensei sério:
Um dia, quando a ternura for a única regra da manhã, acordarei entre os teus braços. A tua pele será talvez demasiado bela. E a luz compreenderá a impossível compreensão do amor. Um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da nossa janela. Sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi nem uma palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar a perfeição da felicidade.
A maturidade me permite olhar com menos ilusões, aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranqüilidade, querer com mais doçura.
Respeite a você mais do que aos outros, respeite suas exigências, respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Para os grandes, eu penso. E viro a cabeça pra pensar em outra coisa. É mais feliz gostar, amar é pra quem pode. Mas você ou a vida ou sei lá. Insiste. E então chega enorme. E só me resta rir que nem quando vejo um bebê muito pequeno e lindo. Você ri. Vai fazer o quê? É o milagre maravilhoso da vida e eu ficando brega e cheia de medo e cheia de vontade de te contar tantas coisas e nem sei se você gosta de ouvir meus atropelos. Muito amor. E então fico querendo não trair a beleza. Com você sinto a fidelidade de ser tranqüila. Um pacto de paz com o mundo. Pra não me afastar de você quando estou longe. E é impossível então que os martelos do apartamento de cima sejam realmente martelos. E é impossível que as chatices do dia sejam realmente sem solução. E os outros caras, aviso, olha, é amor. É amor. Ainda que eu quisesse, não consigo mais nem um centímetro pra você. Desculpa. O amor é terrivelmente fiel. Porque ele ocupa coisas nossas que nem existem nos sentidos conhecidos. É como tomar água morna depois de ter engolido um filtro inteiro de água geladinha. Ninguém nem pensa nisso. Muito amor. De um jeito que era mesmo o que eu achava que existia. E é orgânico dentro da gente ainda que vendo de fora não pareça caber. O corpo dá um jeito. Minha casca reclama, mas incha. Tudo faz drama dentro de mim, ainda que nada seja realmente de surpresa. Sentir isso era o casaco de frio que sempre carreguei no carro. Cansado, abandonado, amassado, sujo, velho. Mas, de repente, tudo isso desistente tem serventia e a vida te abraça. O guarda-chuva do porta-malas. A bolsa falsa do assalto que minha mãe mandava eu ter embaixo do banco do passageiro. Sentir isso é os trocos que você guarda pra emergência. Amar grande é gastar reservas e ainda assim ter coragem pra dar o que não se tem. Amar grande é ter vertigem no chão, mas sentir um chamado pra voar. Amar grande é essa fome enjoada ou esse enjôo faminto. É o soco do bem na barriga. É mostrar os dentes pra se defender, mas acaba em sorriso. É o sal que carrego no fundo falso da bolsa pra quando eu não agüentar a vida. É o açúcar que carrego junto. É tudo que pode sair do controle. É meu corpo caindo. E as almofadas de várias cores pra me dizer que pode dar certo. É o desespero aconchegante.
Se eu me magôo e passo a odiar quem foi insensível comigo, esse problema é meu, não do outro. O outro apenas não correspondeu às minhas expectativas, não deu o colo que eu achava que merecia, não foi o amigo que eu queria que tivesse sido. Ele foi ele. EU é que queria que ele tivesse agido diferente. Então eu sou o responsável pelo que sinto.