terça-feira, 22 de julho de 2008

Fecundação

Gilka MachadoTeus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura.

Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços, de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão de que se vai abrir
todo meu corpo em poemas.

Fatalismo

Manuela Amaral

Amo o que em ti há de trágico. De mau.
De sublime. Amo o crime escondido no teu andar.
A tua forma de olhar. O teu riso fingido e cristalino.

Amo o veneno dos teus beijos. O teu hálito pagão.
A tua mão insegura na mentira dos teus gestos.
Amo o teu corpo de maçã madura.

Amo o silêncio perpendicular do teu contato
A fúria incontrolável da maré
nas ondas vaginais do teu orgasmo.

E esta tua ausência
Este não-ser quem é.

O presente

Alberto da Cunha Melo

O que hoje recebes

e não podes pegar, guardar

em panos e papéis laminados,

é imperecível,

presente onipresente.

Estás com ele na chuva

e não temes que se desfaça.

Estás com ele na multidão

e não o escondes dos mutilados.

O que não existe para os homens

deles estará protegido,

o que os homens não vêem

não poderão espedaçar.

Eis o que não te denuncia

porque não tem face

nem volume para ser jogado no mar.

Eis o que é jovem a cada lembrança

porque não tem data

e série, para envelhecer.

O amor e o outro

Affonso Romano de Sant'anna

Não amo melhor
nem pior do que ninguém.

Do meu jeito amo
Ora esquisito, ora fogoso,
às vezes aflito
ou ensandecido de gozo.
Já amei até com nojo.

Coisas fabulosas
acontecem-me no leito. Nem sempre
de mim dependem, confesso.
O corpo do outro
é que é sempre surpreendente.