quarta-feira, 3 de setembro de 2008

ENTREVISTA COM O MESTRE ARIANO SUASSUNA

Com quantos anos o senhor aprendeu a ler?

SUASSUNA Antes de entrar para a escola, aos 7 anos, orientado pela minha mãe e por uma tia, lá no sertão de Taperoá, na Paraíba. Hoje isso é muito raro, pois as mulheres têm de trabalhar fora, não é?

O hábito da leitura vem dessa mesma época?

SUASSUNA Eu não tenho o hábito da leitura. Eu tenho a paixão da leitura. O livro sempre foi para mim uma fonte de encantamento. Eu leio com prazer, leio com alegria. O meu pai, que perdi aos 3 anos de idade, deixou de herança para nós uma biblioteca fabulosa para os padrões do sertão naquela época. Tinha de tudo. Ibsen, Dostoievski, Cervantes, Machado de Assis, Euclides da Cunha. Meus tios também viviam comprando livros em Campina Grande para eu ler. Era Eça de Queiroz, Guerra Junqueira e um título do qual me lembro muito, Dodinho, de José Lins do Rego.

Como começou a escrever?

SUASSUNA Certo dia, eu tive uma prova de Geografia e não sabia nada. Então, resolvi dar as respostas por meio de versos. O professor quis saber quem era aquele aluno e, em vez de me dar uma bronca, me elogiou. Dias depois, ele deu um jeito de publicar no Jornal do Commercio, aqui, do Recife, um de meus poemas que havia mostrado a ele. Em 1947, eu e outro colega fundamos o Teatro do Estudante de Pernambuco, que encenava peças de nossa autoria. Nesse mesmo ano, escrevi Uma Mulher Vestida de Sol e não parei mais.

O senhor usa o computador para escrever?

SUASSUNA Jamais! Escrevo tudo a mão. Minha letra é muito bonita. Acho que a única função do computador foi aposentar as máquinas de datilografia, que já usei um dia. O meu genro é quem lê os originais e depois passa para o computador.

A popularização de sua obra literária se deve muito à TV. Como ela pode se tornar um aliado do professor no fomento à paixão pela leitura?

SUASSUNA A TV é um meio de comunicação no qual a oralidade predomina. Se o professor escolher boas adaptações, como a que Guel Arraes fez de O Coronel e o Lobisomem, do meu amigo José Cândido de Carvalho, exibir para os alunos e depois facilitar o acesso ao livro, eu duvido que eles não se interessem. Mas é preciso lembrar de fazer o aluno participar da aula, como se fosse um ator!

Essa era sua estratégia em sala de aula quando lecionava?

SUASSUNA Eu sou professor desde os 17 anos. Sempre fui criativo. Uma das coisas de que fazia muita questão é que meus alunos não se entediassem. Acho que todo professor tem de ter alguma coisa de ator, senão ele não terá sucesso. Sendo somente um expositor de idéias, dificilmente ele chamará a atenção dos estudantes.

Como era seu método de avaliação?

SUASSUNA Na universidade, minhas provas não eram difíceis e nunca reprovei por faltas. Eu não queria que os alunos fossem à aula por obrigação. Fazia questão de nunca fazer chamada e também passava trabalhos que estivessem de acordo com o nível de aprendizado deles.

Suas aulas-espetáculo, que já encantaram tantas pessoas Brasil afora, são planejadas?

SUASSUNA Não. Eu tenho um certo dom de improviso e ele nunca me faltou.Uma vez, um colega me provocou por causa disso e eu recorri a uma estrofe de um cantador de repentes que eu conhecia para dar a resposta. Ela diz assim: “Para brigar de tiro e faca/ não sirvo/ não presto não. / Mas solto assim sobre um palco/com um microfone na mão. / Eu sou onça matadeira/ sou tigre bravo e leão”. Ele ficou com tanto medo de mim que se encolheu todo.

Hoje muitos professores promovem rodas de conversa com as crianças. O que o senhor pensa dessa prática?

SUASSUNA Acho ótimo! Não tem nada melhor do que desenvolver a oralidade desde cedo. Eu, muito antes de saber ler, já recitava de cor muitos versos de cordel e acompanhava as cantorias de viola em Taperoá, para onde volto sempre.No sertão, a gente fala muito e foi justamente desse falatório todo que tirei inspiração para os meus livros.

O senhor é um crítico ferrenho do chamado “lixo cultural” que os Estados Unidos tentam impor ao resto do mundo. Quando isso começou aqui no Brasil?

SUASSUNA Na época da Segunda Guerra. Natal e Recife se tornaram bases aéreas e navais importantes para os Estados Unidos e se encheram de americanos. Dizem que lá em Natal um sertanejo analfabeto pegou um táxi e foi dar uma volta pela cidade. E aí ele viu uma placa com as expressões “Stop” e “Pare”. Sem saber ler, perguntou ao motorista o que significava. Este, já tão colonizado pelos americanos, respondeu: “‘Stop’, que está em cima, significa pare. Embaixo está escrito ‘peire’, mas eu não sei o que significa, não”. Quer dizer: o chofer nem sabia mais ler em português. (risos)

Então, ao escrever o Auto da Compadecida, em 1955, o senhor ainda não tinha consciência do problema racial brasileiro?

SUASSUNA Isso mesmo. Tanto que na primeira versão o Cristo era branco. A mudança na cor da pele foi um momento de indignação meu motivado pelo comportamento dos americanos. Tinha visto na revista Life a foto e a notícia de um comício contra a inclusão das primeiras crianças negras nas escolas brancas dos Estados Unidos. Em primeiro plano na foto tinha uma mulher segurando um cartaz que dizia: “Deus foi o primeiro segregacionista ao criar raças diferentes”. Atribuir a Deus uma coisa tão odiosa quanto o racismo me deu uma raiva tão grande que na mesma hora mudei o texto e transformei o Cristo num negro.

Qual a diferença entre ter virado imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1999, e ser homenageado pela escola de samba carioca Império Serrano três anos depois?

SUASSUNA Absolutamente nenhuma. Cada uma teve seu lado negativo e positivo. Os rituais da academia são um pouco burocratizados, mas fiquei honrado de pertencer à mesma instituição do meu grande mestre, Euclides da Cunha. Já a escola de samba tem muita coisa massificada. No dia em que recebi o titulo de doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Império Serrano levou para a cerimônia uma parte da bateria, o mestre-sala, a porta-bandeira e uma ala de meninas e outra de baianas velhas, negras e lindas. Esse povo começou a tocar e a dançar em minha homenagem e beijava o estandarte da escola com uma paixão tão grande que pensei: da mesma forma que fui para a posse da Academia eu tenho de ir ao desfile na Marquês de Sapucaí. E foi aquilo...

No seu discurso de posse na ABL, por sinal, o senhor desenganou os pretendentes à sua cadeira dizendo que decidira não morrer nunca. Ao completar 80 anos, essa promessa se mantém?

SUASSUNA Sim. Você ainda vai me entrevistar quando eu tiver 160 anos. Isso se você tomar algumas providências.

(Fonte: Revista Escola – junho/2007)