- Mãe, mas por que é, então, para que é que acontece tudo?!
- Miguelim, me abraça, meu filhinho, que eu te tenho tanto amor...
Saio deixando os sapatos como alguém que larga os miúdos ao lado do prato como uma criança que mastiga ressentida o canudo do milk sheik ou uma anoréxica quebrando os espelhos do quarto. Saio sem pedir o troco do meu abandono com as malas nas mãos e a marca do teu punho nos dentes.
Eles eram dois
Mas nem sabiam que eram dois
pois os dois eram sozinhos
e se sentiam assim
sozinhos
os dois
Às vezes ficavam abraçados
testemunhando enchentes
e dividiam segredos
e riam das bobagens um do outro
e telefonavam sempre
um para o outro
só numas de ouvirem
a voz
um do outro
Eles não eram felizes
E falavam alto nos bares
E contavam histórias estapafúrdias
os dois
Se encontravam
no meio de tanta gente
Eles sempre se encontravam
e sorriam tímidos um para o outro
porque eram sozinhos
os dois
e por um momento já não era tão assim
eles eram quase dois
mesmo sozinhos
assistindo filmes de madrugada
e pegando no sono
abraçando almofadas
sozinhos
bêbados
tomando comprimidos pra dormir
aviltados com a publicidade
que cercava a solidão dos dois
E eles queriam fugir
E ele queria entrar dentro dela
e ficar lá o resto de sua vida
não pra ser um
mas pra ser dois
definitivamente
de uma vez por todas
os dois.