sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Que presente te dar (Affonso Romano de Sant'Anna)


Que presente te darei, eu que tanto quero e pouco dou, porque esquinho, egoísta, distraído não te cumulo daquilo que deveria cumular? Deveria desatar inúmeros presentes ao pé da árvore, entreabrindo jóias, tecidos, requintados e pessoais objetos, ou deveria dar-te o que não posso buscar lá fora, mas o que em mim está fechado e mal sei desembrulhar? Gostaria de dar-te coisas naturais, feitas com a mão, como fazem os camponeses, os artesãos, como faz a mulher que ama e prepara o Natal, com seus dedos e receitas, adornos e atenção. Te dar, talvez, um pedaço de praia primitiva, como aquelas do Nordeste, ou de antigamente – Búzios e Cabo Frio; um pedaço de mar das Ilhas do Caribe, onde a água e o amor são transparentes e onde a areia é fina e brilhante e, sozinhos, habitam a eternidade, os amantes. Te dar aquele verso de canção um dia ouvida não sei mais aonde, se numa tarde de chuva, se entre os lençóis cansados; um verso, uma canção ou talvez o puro som de um saxofone ao fim do dia, som que tem qualquer coisa de promessa e melancolia. Fugir uma tarde contigo para os motéis, quando todos os homens se perdem nos papéis e escritórios, números e tensões: fugir contigo para uma tarde assim, um espaço de amor entreaberto na peça que nos prega a burocracia dos gestos. Gravar numa fita as canções que me fazem lembrar de ti e ouvi-las, ou tocar de algum modo, em algum cassete as frases que disseste, que em mim gravaste: frases líricas, precisas, que quando estou cinza, relembro e me iluminam. Te enviar todos os cartões que colecionas, de todos os lugares que conheço ou que tu nem imaginas, ir a essas paisagens e ilhas e habitá-las com os selos e palavras de intermitente paixão. Dar-te aquela casa de campo entre montanhas, aquele amor entre a neblina, aquele espaço fora do mundo, fora de outros espaços, sem telefone, sem estranhas ligações, para ali nos ligarmos um no outro em una e dupla solidão. Se queres jóias, te darei. Aqueles corais que vendem na Ponte Vecchia, em Florença; o âmbar ou as pérolas que expõem nas lojas do Havaí; aquelas pedras de vidro para iridescentes colares, que vendem em Atenas, ao pé da Plaka, ao pé da Acrópole, que amorosa nos contempla. Te dar numa viagem os castelos do Loire, e sair comendo e rindo juntos no roteiro gastronômico franco-italiano; ali comendo e aqueles vinhos bebendo, de tudo nos esquecendo, sobretudo dos remorsos tropicais de quem tem sempre ao lado um faminto desamparado, de culpa nos ferindo. Te darei flores. Sempre planejei fazer isto. Tão simples: de manhã acordar displicente e começar a colher flores sob a cama. Ir tirando buquês de rosas, margaridas, vasos de íris, orquídeas que estão desabrochando e, uma a uma, de flores ir te cumulando. E amanhecendo dirás: o amado hoje está doce, seu amor aflorou e está me perfumando. Escrever bilhetes pela casa inteira, metê-los entre as roupas, armários, prateleiras, pra que na minha ausência comeces a desdobrar recados daquele que nunca se ausentou, embora esse ar de quem vive partindo, mas, se alguma vez partiu partido foi para reunido regressar. Te dar um gesto simples. Passar a mão de repente sobre tua mão, como se apalpa a vida ou fruto que pede para ser colhido. Te dar um olhar, não aquele olhar distraído, alienado de quem está nas coisas rosaicas perdido, mas um olhar de quem chegou inteiro e que se entrega enternecido e desamparado dizendo: olha, sou teu, agora veja lá o que vai fazer comigo!

Arthur da Távola

O amor maduro

O amor maduro não é menor em intensidade.
Ele é apenas quase silencioso.
Não é menor em extensão.
É mais definido, colorido e poetizado.
Não carece de demonstrações:

presenteia com a verdade do sentimento.
Não precisa de presenças exigidas:

amplia-se com as ausências significantes.
O amor maduro não disputa, não cobra,

pouco pergunta, menos quer saber.
Teme, sim.
Porém não faz do temor argumento.
Basta-se com a própria existência.
Alimenta-se do instante presente valorizado e

importante porque redentor de todos os equívocos do passado.
O amor maduro é a regeneração de cada erro.
Ele é filho da capacidade de crer e continuar.
É o sentimento que se manteve mais forte

depois de todas as ameaças, guerras ou

inundações existenciais com

epidemias de ciúme, controle ou agressividade.
O amor maduro é a valorização do melhor

do outro e a relação com a parte

salva de cada pessoa.
Ele vive do que não morreu mesmo

tendo ficado para depois.
Vive do que fermentou criando dimensões novas

para sentimentos antigos,

jardins abandonados cheios de sementes.
Ele não pede, tem.
Não reivindica, consegue.
Não persegue, recebe.
Não exige, dá.
Não pergunta, adivinha.
Existe, para fazer feliz.
Só teme o que cansa, machuca ou desgasta.

O amor maduro cresce na verdade

e se esconde a cada auto-ilusão.
Basta-se com o todo do pouco.
Não precisa nem quer nada do muito.
Está relacionado com a vida e sua incompletude,

por isso é pleno em cada ninharia por ela transformada em paraíso.
É feito de compreensão, música e mistério.
É a forma sublime de ser adulto

e a forma adulta de ser sublime e criança.