segunda-feira, 23 de maio de 2011

Miguel Torga


Aqui diante de mim, eu, pecador, me confesso de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau que vão ao leme da nau nesta deriva em que vou.
Me confesso possesso das virtudes teologais, que são três, e dos pecados mortais, que são sete, quando a terra não repete que são mais.
Me confesso o dono das minhas horas. O das facadas cegas e raivosas, e o das ternuras lúcidas e mansas. E de ser de qualquer modo andanças do mesmo todo.
Me confesso de ser charco e luar de charco, à mistura. De ser a corda do arco que atira setas acima e abaixo da minha altura.
Me confesso de ser tudo que possa nascer em mim. De ter raízes no chão desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.
Me confesso de ser Homem. De ser um anjo caído do tal céu que Deus governa;de ser um monstro saído do buraco mais fundo da caverna.
Me confesso de ser eu. Eu, tal e qual como vim para dizer que sou eu aqui,
Diante de mim!

Viktor Frankl


É verdade, tudo é transitório – tudo e todos, seja uma criança que geramos, ou o grande amor do qual nasceu a criança, seja uma grande idéia – tudo é igualmente transitório. A vida humana dura setenta anos, talvez oitenta, e se é uma boa vida, vale a pena vivê-la. Um pensamento dura talvez sete segundos, mas, se é um bom pensamento, contém uma verdade. Mas tanto a grande idéia é transitória como a criança e o grande amor. Eles são transitórios. Tudo é transitório.
Por outro lado, todavia, tudo é eterno. Mais que isso: faz-se eterno. Não podemos evitá-lo. Se tivermos iniciado qualquer coisa, a eternidade se apossa dela. Mas temos de assumir a responsabilidade por aquilo que tivemos preferido realizar, aquilo que tivermos escolhido para começar a ser parte do passado, que tivermos selecionado para ser eterno!
Tudo é escrito no arquivo eterno – nossa vida toda, todas as nossas criações e ações, encontros e experiências, todos os nossos amores e sofrimentos. Tudo isso está contido e permanece no arquivo eterno. A realidade não é um manuscrito redigido em um código que devemos decifrar, como ensinou o grande filósofo existencialista Karl Jaspers. Não, a realidade é, antes, um documento que devemos ditar.

Clarice Lispector

Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.