sexta-feira, 27 de maio de 2011

Nuno Júdice


Desta vez vou escrever-te um poema que vai ser um poema de amor, mas que não é apenas um poema de amor. O amor, com efeito, é algo que não cabe num poema; pelo contrário, o poema é que pode caber no amor, sobretudo quando te abraço, e sinto os teus cabelos na boca, agora que a tua voz me corre pelos ouvidos como, num dia de verão, a água fresca corre pela garganta. A isto, em retórica, chama-se uma comparação; e pergunto o que é que o amor tem a ver com a retórica, ou por que é e o teu corpo se teme de transformar numa metáfora - rosa, lírio, taça, qualquer objeto que tenha, na sua essência, um elemento que me possa levar até ele, como se fosse preciso, para te tocar, substituir-te por uma outra imagem, ver em ti o que não és, nem tens de ser, ou ainda transformar-te num lugar comum, que é aquilo em que, quase sempre, acabam os poemas de amor.Assim, este poema de amor é, mais do que um poema de amor, um exercício para escrever um poema de amor - mas um poema de amor a sério, sem comparações nem metáforas, só contigo, com o teu corpo, com a tua voz, com os teus cabelos, com aquilo que é real, e não precisa de sair da realidade para se tornar objeto de um poema de amor em que o amor, finalmente, deixa de ser o objeto único do poema, que se preocupa acima de tudo com a retórica, as imagens, o equilíbrio das formas. Mas, pergunto, não é o teu corpo uma flor? Não é a tua boca uma rosa? Não são lírios os teus seios? Tudo, então, se transforma: e o que tenho nas mãos é uma imagem, a pura metáfora da vida, a abstrata metamorfose das emoções. O resto, meu amor, é tu - e é por isso que o poema de amor que te escrevo não é, finalmente, um poema de amor.

"Vale a pena te amar por um poema."

José Saramago

Se antes de cada ato nosso, nos puséssemos a prever todas as conseqüências dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala.

Fernando Pessoa

Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte!
O Sol és tu e a Lua és tu e o vento és tu!
Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também.
Onde nada esta' tu habitas e onde tudo esta' - (o teu templo) - eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e alma para te amar.
Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra,
ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e meios para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu.
Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos
nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos.
Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai.
Minha vida seja digna da tua presença.
Meu corpo seja digno da terra, tua cama.
Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim;
e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim;
e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim
e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me.
Dá-me que eu me sinta teu.
Senhor, livra-me de mim.