domingo, 1 de fevereiro de 2009

Eis-me...Sou também um livro. Estou nos seus dias. Decifra-me ou...

Não me leia com a pestana que eu não sou Mario Quintana.
Não me leia de joelhos que eu não sou Paulo Coelho.
Não me leia ensimesmado que eu não sou o Saramago.
Não me leia com teimosice que eu não sou Clarice.
Não me leia a fuzilar que eu não sou Ferreira Gular.
Não me leia como duende que eu não sou Murilo Mendes.
Não me leia de cima que eu não sou Jorge de Lima.
Não me leia com aspereza que eu não sou Cristóvão Tezza.
Não me leia de retrós que eu não sou Amós Oz.
Não me leia acurado que eu não sou Adélia Prado.
Não me leia do abacateiro que eu não sou João Ubaldo Ribeiro.
Não me leia com cara de sueco que eu não sou Umberto Eco.
Não me leia na biblioteca que eu não sou Rubem Fonseca.
Não me leia como rabino que eu não sou Fernando Sabino.
Não me leia respondão que eu não sou Ignácio de Loyola Brandão.
Não me leia furioso, ou furiosa, que eu não sou Guimarães Rosa.
Não me leia fumando cigarro que eu não sou Manoel de Barros.
Não me leia na cadeira que eu não sou Manuel Bandeira.
Não me leia na separata que eu não sou o Mario Prata.
Não me leia na Bahia que eu não sou Moacyr Scliar.
Não me leia em Praga que eu não sou Rubem Braga.
Não me leia na gráfica que eu não sou Kafka.
Não me leia com ares de estudo que eu não sou Câmara Cascudo.
Não me leia em celibato que eu não sou Monteiro Lobato.
Não me leia fazendo pose que eu não sou Alfredo Bosi.
Não me leia a arquejar que eu não sou Fabrício Carpinejar.
Não me leia tão quieto que eu não sou João Cabral de Melo Neto.
Não me leia bebendo uísque que eu não sou Paulo Leminski.
Não me leia mais... que eu não sou Vinicius de Moraes.
Não me leia como se eu não fosse eu... ou Casimiro de Abreu.
Não me leia agora que eu já vou embora.
Não me leia rindo que eu já estou indo.
Não me leia correndo que eu não sou referendo.
Não me leia pedindo justiça que eu não sou dobradiça.
Não me leia hoje antes que eu fuja.

(Gabriel Perissé- Não me leia assim)

O livro que acontece em você...

E não era porque ele esperava por ela, pois muitas vezes Lóri, contando com a já insultuosa paciência de Ulisses, faltava sem avisar-lhe nada: mas à idéia de que a paciência de Ulisses se esgotaria, a mão subiu-lhe à garganta tentando estancar uma angústia parecida com a que sentia quando se perguntava "quem sou eu? quem é Ulisses? quem são as pessoas?" Era como se Ulisses tivesse uma resposta para tudo isso e resolvesse não dá-la — e agora a angústia vinha porque de novo descobria que precisava de Ulisses, o que a desesperava — queria poder continuar a vê-lo, mas sem precisar tão violentamente dele. Se fosse uma pessoa inteiramente só, como era antes, saberia como sentir e agir dentro de um sistema. Mas Ulisses, entrando cada vez mais plenamente em sua vida, ela, ao se sentir protegida por ele, passara a ter receio de perder a proteção — embora ela mesma não soubesse ao certo que idéia fazia de "ser protegida": teria, por acaso, o desejo infantil de ter tudo, mas sem a ansiedade de dever dar algo em troca? Proteção seria presença? Se fosse protegida por Ulisses ainda mais do que era, ambicionaria logo o máximo: ser tão protegida a ponto de não recear ser livre: pois de suas fugidas de liberdade teria sempre para onde voltar.

(...)

Pareceu-lhe que Ulisses, se ela tivesse coragem de contar-lhe o que sentia, e jamais o faria, se lhe contasse ele responderia mais ou menos assim e bem calmo: a condição não se cura, mas o medo da condição é curável. Ele diria isso ou qualquer outra coisa — irritou-a porque cada vez que lhe ocorria um pensamento mais agudo ou mais sensato como este, ela supusesse que Ulisses era quem o teria, ela, que reconhecia com gratidão a superioridade geral dos homens que tinham cheiro de homens e não de perfume, e reconhecia com irritação que na verdade esses pensamentos que ela chamava de agudos ou sensatos já eram resultado de sua convivência mais estreita com Ulisses. E mesmo o fato de seus "sofrimentos" serem agora mais espaçados, o que devia a Ulisses — "sofrimentos"?
Ser era uma dor? E só quando ser não fosse mais uma dor é que Ulisses a consideraria pronta para dormir com ele? Não, não vou ao encontro, pensou então para desligar-se dele. Mas desta vez não quis que ele fosse ao bar esperá-la: para ofendê-lo quis dizer-lhe que não ia, ele que estava habituado a vê-la faltar e não avisar sequer. Dessa vez ela lhe diria que não ia, o que era uma ofensa mais positiva.
Haviam-se passado momentos ou três mil anos? Momentos pelo relógio em que se divide o tempo, três mil anos pelo que Lóri sentiu quando com pesada angústia, toda vestida e pintada, chegou à janela. Era uma velha de quatro milênios.