sábado, 28 de fevereiro de 2009

Demônio - Nietzsche

E se um dia um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse:
" Esta vida, assim como a vives e sempre viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes, não haverá nela nada de novo!
Cada dor, cada pensamento, tudo que há de pequeno em tua vida há de retornar. Tudo, na mesma ordem e seqüência. E, do mesmo modo, esse instante e eu próprio: o demônio. O eterno relógio da existência reiniciará outra vez a contagem do seu tempo, e do tempo das tuas desgraças.”
Não te lançarias ao chão rangendo os dentes e amaldiçoando o demônio?
Não, não. Responderias medrosamente que nunca te disseram algo mais divino. Diga, nunca te disseram algo mais divino?
Mentirias que queres para sempre a tua própria desgraça? Vê bem, se disseres que sim, estarás apenas piorando a eternidade.


Trechos do manifesto da primeira Semana de Arte Moderna da Periferia - Sérgio Vaz

Dos becos da periferia há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. A voz que galopa contra o passado pelo futuro de todos. Pela arte e pela cultura no subúrbio, pela universidade para a diversidade. Contra a arte patrocinada pelos que a corrompem. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico. A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza. Sejamos, pois, a favor da poesia periférica que brota na porta do bar. A favor do teatro que não venha do ter ou não ter. A favor do cinema real que não iluda. Das artes plásticas que querem substituir os barracos de madeira. Da dança que desafoga. Da música que não embala os adormecidos. Da literatura das ruas despertando nas calçadas. Pela periferia unida, no centro de todas as coisas. Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais de que a arte vigente não fala. Contra a surdez e a mudez artística. Pelo artista que não compactua com a mediocridade. Por um artista a serviço da comunidade, do país, um artista que por si só exercita a revolução. Contra a arte domingueira que a televisão defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona. Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso ao que há de bom na produção cultural. Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Contra um sistema que precisa de carrascos e vítimas. Contra os covardes e eruditos de aquário. Contra o artista serviçal escravo da vaidade. Contra os vampiros das verbas públicas para a arte privada. A arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.Enfim, por uma periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor. É tudo nosso! Miami pra eles? Me ame pra nós.

Franscico Carvalho

Tudo mudou. Homens, coisas e animais mudaram de lã ou de pele. As palavras já não são as mesmas do tempo em que estudávamos gramática com os olhos míopes das professoras. Nádegas e pernas das mestras – objeto direto do nosso desejo – ofuscavam o interesse pela didática. Olho o mundo de todos os ângulos possíveis e tudo me parece oblíquo. É a civilização globalizada, a cultura de massa, a sagração do factóide, a fragmentação dos idiomas. Corta-se a palavra em frações microscópicas. A vida, o amor, a morte, a realidade: tudo agora virou fast food.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Osho

Se você puder não fazer coisa alguma, isso é o melhor. É necessário ter muita coragem para não fazer coisa alguma. Para fazer, não é preciso ter muita coragem, porque a mente é uma fazedora. O ego sempre anseia fazer algo; mundano ou não mundano, o ego sempre deseja fazer algo. Ao fazer alguma coisa, o ego se sente adequado, saudável, em movimento, deliciando-se consigo mesmo. Não fazer coisa alguma é o que há de mais difícil no mundo, e, se você conseguir, isso é o melhor. A própria idéia de que precisamos fazer algo está basicamente errada. Precisamos ser, não fazer. Tudo o que sugiro que as pessoas façam é apenas para que venham a conhecer a futilidade do fazer, de tal modo que um dia, a partir do puro cansaço, elas caiam no chão e digam: "Agora chega! Não queremos fazer coisa alguma!" E o trabalho real começará. O trabalho real é apenas ser, porque tudo aquilo de que você precisa já está dado, e tudo aquilo que você possa ser já é. Você ainda não sabe, isso é verdade.

Assim, o que é necessário é estar em um tal espaço de silêncio que você possa cair em si mesmo e perceber o que você é.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Leveza - Fabrício Carpinejar

É preciso ser leve como uma brasa, não como uma chama. Leve como um aceno, não como um grito. Leve como uma horta, não como um jardim. Leve como um livro, não como uma página. Leve como um poema, não como um verso. Leve como uma duna, não como o vento. Leve como um vestido, não como um lenço. Leve como o cristal, não como o vidro. Leve como o pão, não como a migalha. Leve como um temporal, não como o relâmpago. Leve como o varal, não como o casaco. Leve como o telhado, não como a telha. Leve como uma árvore, não como o fruto. Leve como o caroço, não como o inseto. Leve como as mãos, não como a aliança. Leve como o mar, não como a espuma. Leve como uma geada, não como a nuvem. Leve como vinho, não como a fumaça. Leve como a ofensa, não como o elogio. Leve como o clarão, não como a lâmpada. Leve como a pá, não como a faca. Leve como o cavalo, não como a lã. Leve como o armário, não como a gaveta. Leve como o moinho, não como o chapéu. Leve como o rosto, não como o pente. Leve como o mel, não como abelhas. Leve como a rocha, não como a erva. Leve como uma varanda, não como a janela. Leve como a voz, não como o silêncio. Leve como a meia-noite, não como o meio-dia. Leve como a despedida, não como a volta. Leve como uma casa, não como um quarto. Leve como as córneas, não como as moedas. Leve como um corredor, não como um quadro. Leve como uma escada, não como um degrau. Leve como uma mesa, não como o prato. Leve como o caráter, não como a opinião. Leve como uma fome, não como o apetite. Leve como desejo, não como a vontade. Leve como o amor, não como a paz. Leve como o corpo, não como o sangue. Leve como uma porta, não como um pêndulo. Leve como o inverno, não como o verão. Leve como a confidência, não como o segredo. Leve como a alegria, não como a euforia. Leve como a memória, não como a papoula. Leve como o balanço, não como a corda. Leve como a insistência, não como a dúvida. Leve como um casal, não como a solidão. Leve como a boca, não como a língua. Leve como a música, não como a palavra. Leve como a migração, não como o pássaro. Leve como o ninho, não como o ramo. Leve como a pata, não como a asa. Leve como uma cicatriz, não como o traço. Leve como o espanto, não como a reza. Leve como o medo, não como um morto. É preciso ser denso para ser leve.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

O Desaparecido - Rubem Braga

Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.


Vá em busca de si mesmo! Dulce Magalhães

“Entre o sono e o sonho, entre mim e o que em mim é o quem eu me suponho, corre um rio sem fim”. Fernando Pessoa, inspirado poeta, leitor sensível da alma humana, pode traduzir com sutileza o desafio de cada existência. Onde se dará nosso despertar de compreensão?

Vamos de crises em crises aprendendo aos tropeços, sofrendo de ansiedade, estresse e cansaço. É preciso compreender que não é a crise que nos encontra, somos nós que a produzimos. Isso se dá porque não fluímos bem nos movimentos da mudança, nesse rio sem fim a que costumamos chamar vida.

A mudança é o ritmo no qual o mundo caminha e só há um jeito de se dar bem com ela, aprendendo a mudar também. O maior paradoxo, a contradição mais coerente da mudança, é que é preciso mudar para ser quem se é. É preciso deixar de ser quem não somos, de fazer o que não queremos e viver o que não gostamos. Se olharmos atentamente nossa realidade, vamos perceber que muitas coisas em nosso dia a dia se encaixam nessa definição que é contrária à nossa natureza.

É urgente nos armarmos de coragem e irmos à busca de nós mesmos. É prioritário definir o que vamos fazer com o tempo que nos foi dado. É fundamental acordarmos do sono ilusório da realidade para vivermos na prática o sonho que nos comove. A crise é apenas um sinal na estrada dizendo que é hora de rever o caminho. Vá em busca de si mesmo e não tenha medo dos desafios e das incertezas, pois as asas só aparecem quando o chão desaparece.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Ausência

Vinícius de Moraes

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Eis-me...Sou também um livro. Estou nos seus dias. Decifra-me ou...

Não me leia com a pestana que eu não sou Mario Quintana.
Não me leia de joelhos que eu não sou Paulo Coelho.
Não me leia ensimesmado que eu não sou o Saramago.
Não me leia com teimosice que eu não sou Clarice.
Não me leia a fuzilar que eu não sou Ferreira Gular.
Não me leia como duende que eu não sou Murilo Mendes.
Não me leia de cima que eu não sou Jorge de Lima.
Não me leia com aspereza que eu não sou Cristóvão Tezza.
Não me leia de retrós que eu não sou Amós Oz.
Não me leia acurado que eu não sou Adélia Prado.
Não me leia do abacateiro que eu não sou João Ubaldo Ribeiro.
Não me leia com cara de sueco que eu não sou Umberto Eco.
Não me leia na biblioteca que eu não sou Rubem Fonseca.
Não me leia como rabino que eu não sou Fernando Sabino.
Não me leia respondão que eu não sou Ignácio de Loyola Brandão.
Não me leia furioso, ou furiosa, que eu não sou Guimarães Rosa.
Não me leia fumando cigarro que eu não sou Manoel de Barros.
Não me leia na cadeira que eu não sou Manuel Bandeira.
Não me leia na separata que eu não sou o Mario Prata.
Não me leia na Bahia que eu não sou Moacyr Scliar.
Não me leia em Praga que eu não sou Rubem Braga.
Não me leia na gráfica que eu não sou Kafka.
Não me leia com ares de estudo que eu não sou Câmara Cascudo.
Não me leia em celibato que eu não sou Monteiro Lobato.
Não me leia fazendo pose que eu não sou Alfredo Bosi.
Não me leia a arquejar que eu não sou Fabrício Carpinejar.
Não me leia tão quieto que eu não sou João Cabral de Melo Neto.
Não me leia bebendo uísque que eu não sou Paulo Leminski.
Não me leia mais... que eu não sou Vinicius de Moraes.
Não me leia como se eu não fosse eu... ou Casimiro de Abreu.
Não me leia agora que eu já vou embora.
Não me leia rindo que eu já estou indo.
Não me leia correndo que eu não sou referendo.
Não me leia pedindo justiça que eu não sou dobradiça.
Não me leia hoje antes que eu fuja.

(Gabriel Perissé- Não me leia assim)

O livro que acontece em você...

E não era porque ele esperava por ela, pois muitas vezes Lóri, contando com a já insultuosa paciência de Ulisses, faltava sem avisar-lhe nada: mas à idéia de que a paciência de Ulisses se esgotaria, a mão subiu-lhe à garganta tentando estancar uma angústia parecida com a que sentia quando se perguntava "quem sou eu? quem é Ulisses? quem são as pessoas?" Era como se Ulisses tivesse uma resposta para tudo isso e resolvesse não dá-la — e agora a angústia vinha porque de novo descobria que precisava de Ulisses, o que a desesperava — queria poder continuar a vê-lo, mas sem precisar tão violentamente dele. Se fosse uma pessoa inteiramente só, como era antes, saberia como sentir e agir dentro de um sistema. Mas Ulisses, entrando cada vez mais plenamente em sua vida, ela, ao se sentir protegida por ele, passara a ter receio de perder a proteção — embora ela mesma não soubesse ao certo que idéia fazia de "ser protegida": teria, por acaso, o desejo infantil de ter tudo, mas sem a ansiedade de dever dar algo em troca? Proteção seria presença? Se fosse protegida por Ulisses ainda mais do que era, ambicionaria logo o máximo: ser tão protegida a ponto de não recear ser livre: pois de suas fugidas de liberdade teria sempre para onde voltar.

(...)

Pareceu-lhe que Ulisses, se ela tivesse coragem de contar-lhe o que sentia, e jamais o faria, se lhe contasse ele responderia mais ou menos assim e bem calmo: a condição não se cura, mas o medo da condição é curável. Ele diria isso ou qualquer outra coisa — irritou-a porque cada vez que lhe ocorria um pensamento mais agudo ou mais sensato como este, ela supusesse que Ulisses era quem o teria, ela, que reconhecia com gratidão a superioridade geral dos homens que tinham cheiro de homens e não de perfume, e reconhecia com irritação que na verdade esses pensamentos que ela chamava de agudos ou sensatos já eram resultado de sua convivência mais estreita com Ulisses. E mesmo o fato de seus "sofrimentos" serem agora mais espaçados, o que devia a Ulisses — "sofrimentos"?
Ser era uma dor? E só quando ser não fosse mais uma dor é que Ulisses a consideraria pronta para dormir com ele? Não, não vou ao encontro, pensou então para desligar-se dele. Mas desta vez não quis que ele fosse ao bar esperá-la: para ofendê-lo quis dizer-lhe que não ia, ele que estava habituado a vê-la faltar e não avisar sequer. Dessa vez ela lhe diria que não ia, o que era uma ofensa mais positiva.
Haviam-se passado momentos ou três mil anos? Momentos pelo relógio em que se divide o tempo, três mil anos pelo que Lóri sentiu quando com pesada angústia, toda vestida e pintada, chegou à janela. Era uma velha de quatro milênios.