sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

José Luís Peixoto

Ao escrever tinha vivido. Eram trinta páginas que eram o meu amor todo e a minha esperança. Sentado à escrivaninha onde os anos passavam, olhávamo-nos muito: ela dentro de mim e o meu olhar dentro de mim, junto dela. O meu braço tremia e, com a esferográfica, escrevia em folhas brancas cada uma das palavras que a diziam. Ela sentia as palavras a tocarem-na. Ela fechava lentamente os olhos. E o tempo em que mantinha as pálpebras fechadas era tocar-me, era tocar o sol e, na pele, absorver toda a sua luz. Eu, que não podia ter nos braços aquela vida interior que era a minha vida toda, que não podia dar-lhe a mão, que não podia sequer passar-lhe os dedos devagar pelo rosto, fazia tudo isso escrevendo. Nas palavras escritas tocávamo-nos realmente. Como duas pessoas sobre a terra. Nas palavras, existiam os nossos olhares entenecidos. Dentro de cada uma das palavras, existiam mil palavras, e também cada uma dessas mil palavras tinha dentro de si mil palavras. E mesmo essas palavras que existiam dentro de outras palavras eram enormes, porque também elas tinham dentro de si mil palavras que tinham dentro de si mil palavras. Nas palavras escritas éramos possíveis. O nosso amor. Tudo. O mundo. Por isso, aquelas eram as trinta páginas mais importantes da minha vida.



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